Zélia Gattai
Graças a uma das visitas de Vinicius à nossa casa, salvou-se a série de canções para crianças, de sua autoria:
À beira da piscina, o inseparável copo de uísque ao lado, violão em punho, Vinicius cantava.
Faço um parênteses para me desculpar. Na afobação de querer contar logo a história que me veio à memória
– como já devem ter percebido, não tenho anotações, tiro tudo da cachola à medida que as lembranças chegam
– esqueci=me
de pedir licença para, ainda uma vez, avançar no tempo. Peço agora,
pois devo explicar como foi que as músicas infantis de Vinicius de
Moraes se salvaram. Avanço tanto, tanto, que falo até de meus netos, os
três que existiam na época: Mariana, Bruno e Maria João.
Nessa ocasião, o amor de Vinicius, sua mulher, era uma baiana, Gessy
Gesse, a quem devemos a vinda do poeta à Bahia, onde até uma casa ele
construiu, disposto a ancorar entre o mar e os coqueiros de Itapuã.
Estávamos à beira da piscina e Vinicius cantava
– como foi dito
– quando chegaram meus três netos.
Eu agora vou cantar umas musiquinhas para vocês, disse Vinicius às crianças, e começou:
Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada... Espera aí, interrompi, vou buscar um gravador. Assim dizendo saí ligeiro. Voltei em seguida, gravadorzinho ligado e ele recomeçou:
Lá vem o pato, pato aqui, pato acolá...
Cantou todas as canções, intercalando entre elas uma chamada: Esta é
para Marianinha!... Esta é para Bruninho!... Esta é para Maria João!...
Encantadas, as crianças ouviam as músicas pela primeira vez, pois elas
ainda não haviam sido gravadas naquela ocasião. Ao saber que não restara
nenhuma gravação delas após a morte de Vinicius, entreguei meu cassete à
Gilda Queiroz Matoso, última e amada companheira do poeta até seus
derradeiros momentos. Gravação precária, porém a única que restou e é a
que se ouve até hoje.
Vinicius tornou-se íntimo de Calasans Neto e Auta Rosa, adorava o
casal, alugou casa em Itapuã antes de construir a própria, queria ficar
perto deles.
A rua da Amoreira, onde moravam
– e moram até hoje
– Calasans e Auta Rosa, era um horror: lama, buraqueira e, como se isso não bastasse, havia esgoto a céu aberto.
Frequentador assíduo da casa, inconformado com a situação dessa rua,
Vinicius não teve dúvida, redigiu uma petição em versos ao prefeito de
Salvador. No poema, verdadeiro primor, pedia-lhe atenção e carinho para a
rua.
Combinou com Jorge, que conseguiu a publicação do poema-petição na primeira página do jornal
A Tarde.
Tiro e queda, a resposta do prefeito foi imediata, em pouco tempo
a rua de Auta e Calá foi consertada e asfaltada e, diga-se de passagem,
ela foi, por algum tempo, a única rua asfaltada das imediações.
Naqueles tempos, a decantada beleza de Itapuã se resumia no mar, nas praias, nos coqueirais e nas canções de Dorival Caymmi.
Para festejar o acontecimento, Jenner Augusto e Luísa ofereceram um
almoço ao qual Vinicius compareceu vestido de gari da limpeza pública,
levando para Calá e Auta a petição, enquadrada.
Texto extraído do livro A casa do rio Vermelho (Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 127).
Zélia Gattai Amado [São Paulo (SP), 1916 – Salvador
(BA), 2008]. Memorialista, escritora de literatura infantil e
romancista. Filha de imigrantes italianos e caçula de cinco irmãos, vive
em São Paulo toda a infância e adolescência. Influenciada pela
militância do pai no movimento operário, torna-se anarquista. Aos 20
anos, casa-se com o intelectual e membro do Partido Comunista Aldo
Veiga, com quem tem um filho. Separada de Veiga, em 1945, em uma
manifestação pela anistia dos presos políticos, conhece em São Paulo o
romancista Jorge Amado (1912-2001), com quem se casa meses depois. Amado
é eleito deputado federal, em 1946, pelo PCB (Partido Comunista
Brasileiro), então, eles se mudam para o Rio de Janeiro. Com o PCB
declarado ilegal e seus integrantes perseguidos, logo partem para o
exílio em Paris, onde vivem por três anos. Nesse período, Zélia estuda
civilização francesa, fonética e língua francesa, na Universidade de
Sorbonne. Entre 1950 e 1952, vive na Tchecoslováquia, e começa a
fotografar, registrando momentos importantes da vida do marido. Em 1963,
muda-se para Salvador. Aos 63 anos, publica seu primeiro livro,
Anarquistas, graças a Deus. Escreve também literatura infantil, como
Pipistrelo das mil cores, de 1984. É eleita, em 2001, para a ABL (Academia Brasileira de Letras), para a cadeira ocupada por Amado, a de número 23.
Enciclopédia Itaú Cultural-Literatura Brasileira. Disponível em http://itaucultural.org.br.